António Monteiro

 O EVANGELHO DE JUDAS

 

O Beijo de Judas em pintura anônima do século XII.

Segundo o Evangelho de Judas o beijo não foi uma traição

 

INTRODUÇÃO

 

A Descoberta

 

            Em 1978, um aldeão de Beni Masar[1], no Egipto, que se dedicava à procura de tesouros, entrou numa gruta situada em local que foi sempre mantido em segredo, onde, no meio de  ossadas humanas, se encontrava uma caixa de pedra contendo um códice e alguns manuscritos em papiro.

Depois de várias tentativas, o aldeão conseguiu vender o seu achado a um antiquário do Cairo, chamado Hanna, que possuía alguns verdadeiros tesouros, muitos dos quais, incluindo os manuscritos, iriam ser roubados nos princípios dos anos 80 e misteriosamente levados para fora o país. Mas Hanna, não menos misteriosamente,  conseguiu recuperar todos os seus bens.

Em Maio de 1983, embrulhou os manuscritos em folhas de jornal, meteu-os em três caixas de sapatos e partiu para Genebra onde marcara encontro num quarto de hotel com representantes da Universidade Metodista do Sul, de Dallas. Estes possíveis compradores, ao verem os manuscritos, acharam por bem pedir o parecer de um especialista na matéria. Para ali seguiu, de imediato, Stephen Emmel[2], então a trabalhar em Roma, acompanhado de dois colegas, os quais dispuseram, apenas, de meia hora para observar os manuscritos, sendo-lhes vedado tirar fotografia e tomar notas. Emmel foi, pois, o primeiro cientista a observar os documentos e a aperceber-se da sua extraordinária importância, mas os 3 milhões de dólares pedidos pelo antiquário excediam largamente os 50.000 que a universidade autorizara a despender, pelo que não houve negócio. 

Em Fevereiro ou Março de 1984, Hanna partiu para Nova Iorque em busca de compradores, mas cedo verificou que a sua viagem tinha sido infrutífera; decidiu, então,  pôr os manuscritos a salvo num cofre de uma agência do Citibank, em Hicksville, Long Island, e regressar ao Cairo.

Em Abril de 2000 conseguiu, finalmente, vender os documentos por um valor que terá sido próximo dos 300.000 dólares, a Frieda Nussberger-Tchacos, uma grega nascida no Egipto, que tinha estudado Egiptologia em Paris e vingado no nebuloso negócio de antiguidades.

Frieda começou por contactar a Biblioteca Beinecke de Livros e Manuscritos Raros, da Universidade de Yale, e interessar os bibliotecários nos manuscritos, mas cinco meses depois, e apesar de reconhecerem o seu extraordinário valor, os responsáveis duvidaram da legitimidade da sua presença nos Estados Unidos[3] e devolveram-nos à antiquária.

Frieda virou-se, então, para Bruce Ferrini, um cantor de ópera que nos intervalos negociava em manuscritos antigos, com quem, em Setembro de 2000, celebrou um contrato de venda tendo recebido dois cheques pré-datados no valor de 1,25 milhões de dólares cada, com vencimento nos princípios do ano seguinte.

Porém, as folhas de papiro que ao longo de 1.700 anos se tinham mantido em bom estado de conservação nas areias quentes e secas do deserto egípcio, tinham-se deteriorado durante os 16 anos em que estiveram no cofre do Citibank, e muitas desfizeram-se em centenas de fragmentos;  Bruce Ferrini tentou reconstituir os documentos mas acabou por baralhar as folhas, o que levou Frieda, mal soube do sucedido, a rescindir o contrato, o que não agradou ao cantor. Depois de várias peripécias, em Fevereiro de 2001 recuperou os manuscritos e levou-os para a sua casa de Zurique.

Frieda conseguiu, então, o apoio da Maecenas Foundation for Ancient Art, de Basileia, uma instituição privada dirigida por Mario Jean Roberty, um advogado seu amigo, a qual, com a colaboração do Waitt Institute for Historical Discovery e da National Geographic Society, que adquiriu os direitos de divulgação em todos os media, deu início, em Julho de 2001, a um longo e complexo processo de restauração, datação, autenticação e tradução que ficou a cargo de uma vasta equipa de académicos, historiadores, teólogos e técnicos, liderada pelo  professor Rodolphe Kasser[4], trabalho esse que apenas foi dado por concluído em Abril de 2006, altura em que os manuscritos, antes de serem devolvidos ao Egipto e confiados à guarda do Museu Copta do Cairo, foram expostos ao público na sede da National Geographic Society, em Washjngton, D.C..

 

O Achado

 

O achado consiste:

 

§         num códice encadernado em cabedal[5], posteriormente catalogado como Codice Tchacos, contendo os seguintes tratados escritos em saídico, um dialecto do copta[6],

ú  Evangelho de Judas,

ú  Primeiro Apocalipse de Tiago,

ú  Epístola de Pedro a Paulo e

ú  Allogenes (fragmentos)

§         Livro do Êxodo, em grego,

§         Cartas de Paulo,  em saídico,

§         e um tratado de matemática, em grego.

 

Estes escritos eram já conhecidos excepto o Evangelho de Judas, do qual apenas se sabia existir por ter sido citado por autores antigos que o condenaram por heresia, entre os quais avulta Irineu, bispo de Lion, que na sua famosa obra Adversus Haereses (c. 180) diz que há quem “(...) declare que Caim deriva o seu ser do Poder de cima e reconhece  que Esau, Korah, os Sodomitas [7] e todas essas pessoas estão relacionadas entre si (...) Declaram que Judas, o traidor, estava perfeitamente familiarizado com estas coisas e que ele sozinho, conhecendo a verdade como nenhum outro, realizou o mistério da traição; por ele todas as coisas, terrestres e celestes, foram assim lançadas na confusão. Escreveram uma história fictícia deste género que intitularam Evangelho de Judas”.  

            Os livros que chegaram às mãos do professor Rodolphe Kasser estão incompletos e degradados; as 26 folhas de papiro do Evangelho de Judas encontram-se em tão mau estado que não  foi possível traduzir mais do que oitenta por cento do seu conteúdo; refira-se, a título de curiosidade, que metade de uma das folhas apareceu em Nova Iorque já em Fevereiro de 2006!

As análises de radiocarbono feitas em Janeiro de 2005 pelo conceituado laboratório da Universidade do Arizona[8], a análise da tinta realizada em Janeiro de 2006 por McCrone Associate Inc. de Chicago, o exame por imagem multiespectral feito em Fevereiro seguinte pelo Laboratório de Imagens Papirológicas da Universidade Brigham Young dos EUA, a peritagem à caligrafia e o estudo gramatical do dialecto saídico, permitem concluir que este manuscrito foi escrito entre os anos 220 e 340 e é uma tradução do original grego que se presume ter sido escrito entre os anos 130 e 170, o qual terá sido adoptado pelos Caínitas, um grupo de cristãos gnósticos que veneravam Caim.

Assim, admito que esta versão em copta tenha pertencido à Biblioteca Gnóstica de Nag Hammadi, mas que, por qualquer motivo, foi ocultada cerca de 300 quilómetros mais a norte.

 

 


 

O  EVANGELHO  DE  JUDAS

 

Nota prévia

 

            Em virtude do copy right deste texto pertencer à National Geographic Society não me é possível apresentar a versão portuguesa da tradução do copta para inglês feita por Rodolphe Kasser, Marvin Meyer, Gregor Wurst e François Gaudard, a qual poderá ser consultada pelos mais interessados no site daquela instituição [9].

 

* * *

 

“O relato secreto da revelação do que Jesus falou em conversa com Judas Iscariotes durante uma semana...”  Assim começa o Evangelho de Judas.

Se para um não iniciado um texto gnóstico é extremamente difícil de interpretar, este, que se encontra incompleto, é ainda muito mais difícil; ainda assim, há algumas passagens que à luz dos ensinamentos rosacruzes de Max Heindel são compreensíveis.

Segundo este evangelho,  Judas era o único discípulo suficientemente forte para se revelar como homem perfeito, capaz de ficar diante de Jesus, embora não pudesse fitá-lo; terá sido por isso que Jesus lhe confiou segredos que negou aos outros discípulos, como se depreende de passagens como “Afasta-te dos outros e eu te direi os mistérios do reino. Para ti é possível alcançá-lo, mas tu sofrerás imenso”, ou  Vem, para que te possa ensinar sobre segredos que pessoa alguma jamais viu.

Mas este evangelho não retrata, apenas, um Judas diferente do que as igrejas nos apresentam. Retrata um Jesus que se demarca inequivocamente do deus adorado pelos seus discípulos e se ri das práticas religiosas com as quais esse deus é glorificado e cujos sacerdotes são pecadores que sacrificam os próprios filhos ou as suas mulheres, que matam, que dormem com homens e que junto do altar invocam o nome de Jesus. Quando os discípulos lhe dizem que ele é o filho do seu deus, Jesus responde que nenhuma pessoa das suas gerações o conhecerá, o que equivale a negar ser filho deste deus, o adorado pelos judeus.

A passagem mais importante e surpreendente é onde Jesus diz a Judas “... tu ultrapassarás todos eles. Porque tu sacrificarás o homem que me reveste. Já foi levantado o teu vaso [10](…)”.

 

COMENTÁRIOS

 

O facto de se tratar de um relato secreto indica que o Evangelho de Judas se destinava, não às massas, mas aos iniciados de uma escola de mistérios gnósticos.

Embora Jesus seja a figura central deste texto, Judas Iscariote é indiscutivelmente a personagem que o autor mais exalta. Ao contrário da imagem de execrando traidor que a Cristandade vem anatematizando ao longo de dois mil anos a partir de uma interpretação ad litteram dos evangelhos canónicos, Judas Iscariote foi um submisso, fiel e extremamente corajoso discípulo de Cristo-Jesus. Aliás, o nome Judas é a forma grega do hebraico Judah que curiosamente significa louvado, exaltado, sendo o sobrenome Iscariote indicativo da sua naturalidade, Karioth, uma cidade da Judeia (Josué 15, 25).

De facto, os evangelhos canónicos não referem Judas Iscariote como traidor, mas sim como aquele que entregou Jesus, para o que utilizam o termo grego paradidômi [11], que significa entregar, o mesmo que João empregou, relativamente à morte de Jesus, para dizer ... entregou o espírito [12]. Será curioso notar que este termo paradidômi significava, nos Mistérios Órficos, a entrega do candidato ao rito da iniciação feita pelo hierofante.

 

O sacrifício de Judas

 

O deus que criou este mundo e que os homens adoram, incluindo discípulos de Jesus, é um ser imperfeito e muito inferior ao Deus Supremo e Verdadeiro. Este é um dos conceitos fundamentais do Gnosticismo, que, aliás, Fernando Pessoa poetizou ao dizer que Deus é o Homem de outro Deus maior [13].

Os sacerdotes destes deus menor, bem como os homens em geral, tudo fazem em nome de Jesus, mas na realidade vivem em pecado, uma trágica situação da qual nem os próprios discípulos estão totalmente à margem, a não ser Judas, cujo sacrifício permitiu que o Espírito Solar Cristo cumprisse a sua principal missão.

Conforme nos diz Max Heindel, esta missão somente poderia ser cumprida a partir do interior da Terra, o que exigia a entrada do Cristo no nosso planeta; mas essa entrada só poderia ser feita através de sangue derramado por Jesus, o  qual teria  de ser morto. Na época, a Palestina estava ocupada pelos romanos e só estes tinham o direito de proceder a execuções; mas para eles Jesus não passava de mais um dos muitos profetas que por ali pululavam, mas para os sacerdotes judeus a situação era mais grave pois  a doutrina que pregava comprometia toda a religião hebraica. Nestas condições, os sacerdotes judeus tinham de o denunciar à autoridade romana como um perigoso revolucionário. Porém, os romanos não o conheciam pessoalmente, pelo que alguém teria de o denunciar. Perfeitamente ciente desta conjuntura, Cristo-Jesus encarregou Judas de levar os romanos até si, o que este fez, a despeito do imenso sofrimento que tal lhe iria causar.

E Judas sacrificou, de facto, o homem Jesus que revestia Cristo, o seu verdadeiro Senhor. 

 Notas


[1] Pequena aldeia situada a 44 quilómetros a norte de El Minya, importante cidade da margem esquerda do Nilo, situada a cerca de 220 quilómetros a sul do Cairo e 280 quilómetros a norte de Nag Hammadi.

[2] Presentemente é professor de Estudos Coptas na Universidade de Münster, Alemanha.

[3] Na altura já vigorava a legislação egípcia que protege as antiguidades encontradas no país, em especial contra o contrabando e a sua saída ilícita para o estrangeiro.

[4] Nascido  em 1927 na Suíça,  Rodolphe Kasser, filólogo e arqueólogo, é um dos maiores peritos mundiais em linguagem copta. Desde 1965 dirige as escavações da Missão Suíça de Arqueologia Copta em Kellia, no Baixo Egipto.

[5] Códice é um livro antigo formado por folhas dobradas e presas num lado.

[6] O copta era uma língua afro-asiática falada no Egipto nos sec. III e IV A.D., e que derivava directamente da antiga língua dos faraós. O copta era escrito  em caracteres gregos e compreendia seis dialectos, dos quais os mais importantes eram o saídico e o boarírico, falados, respectivamente, no Alto  e no Baixo Egipto.  O copta foi usado por muitos eclesiásticos cristãos, como Santo António (251-356), São Pacómio (fal. c. 346) e outros.

[7] Figuras bíblicas de pecadoras impenitentes.

[8] O mesmo que procedeu à datação dos Manuscritos do Mar Morto.

[9] In  http://www9.nationalgeographic.com/lostgospel/_pdf/GospelofJudas.pdf

[10] Horn, no original inglês. O chifre era usado para conter o óleo da unção, conforme consta de 1 Samuel 16, 13; daí que na antiga monarquia norueguesa o óleo destinado a ungir o rei fosse transportado num chifre. 

[11] Παραδιδωμι  - cf.vg Marcos 3, 19 ou João 18,2.

[12]παρεδωκεν το πνευμα

[13] In No Túmulo de Christian Rosenkreutz.


 


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